terça-feira, 30 de novembro de 2010

Poesia - A FLOR E A NÁUSEA

A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas roupas, / Vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias espreitam-me. / Devo seguir até o enjôo? / Posso, sem armas, revoltar-me''? Olhos sujos no relógio da torre: / Não, o tempo não chegou de completa justiça. / O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. / O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. / Sob a pele das palavras há cifras e códigos. / O sol consola os doentes e não os renova. / As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado. / Nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los? / Tomei parte em muitos, outros escondi. / Alguns achei belos, foram publicados. / Crimes suaves, que ajudam a viver. / Ração diária de erro, distribuída em casa. / Os ferozes padeiros do mal. / Os ferozes leiteiros do mal. Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima. Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. / Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto. / Façam completo silêncio, paralisem os negócios, / garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / Seu nome não está nos livros. / É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde / e lentamente passo a mão nessa forma insegura. / Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. / Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(Autor - Carlos Drummond de Andrade)
(Fotos - Internet)